Conhecimento absoluto? ...





Num comentário ao post Grande Confusão, foi-me dito que existem afirmações com carácter de "verdade metafísica universal", as quais constituem conhecimento absoluto irrefutável, por oposição aos "becos sem saída" que eu referia no meu post Filosofia para quê?.

Quando referi os tais "becos sem saída", estava precisamente a pensar sobre as tentativas feitas pelos epistemoligistas de definirem "Verdade" ou "Realidade", as quais na minha visão do mundo são todas votadas ao fracasso. Nesta minha visão, não concebo simplesmente que a mente Humana possa alguma vez abarcar a essência última do mundo em que vive. O máximo que pode fazer, e faz razoavelmente bem através do método científico, é ganhar sucessivamente um domínio cada vez maior na manipulação do mundo, mas sem nunca sequer precisar de saber a resposta às perguntas que os filósofos se colocam do género "Mas o que é realmente este mundo do qual fazemos parte?".
Parece-me que todo o nosso raciocínio sobre o mundo se resume ao estabelecer de relações entre diferentes observações. Isso não nos aproxima minimamente da essência do(s) objecto(s) dessas observações, se é que percebemos sequer o que significa tal "essência". No entanto, o anseio permanece e é por isso que acabo por entrar nestas discussões metafísicas...

A um dado momento, surge um suposto exemplo do que para algumas pessoas constitui uma "verdade absoluta irrefutável":


"existe uma realidade exterior ao meu 'eu', e eu sou capaz de a conhecer como ela é".


Ui! Aqui sim, já está a ser dito algo do qual discordo completamente - isto se estiver a entender correctamente a afirmação. A primeira parte ainda concedo de "barato", até porque não me parece ser uma afirmação muito forte.
Mas na segunda parte em que se afirma "e eu sou capaz de a conhecer como ela é" já tenho que colocar um travão para se ir mais devagar. Gostaria que me fossem dados exemplos concretos de "algo pertencente ao mundo exterior que possamos conhecer tal como é". Pelo meu lado, vou tentar dar de seguida um exemplo com o qual ilustro porque acredito que a afirmação de cima carece de qualquer significado.

De entre todos os tipos de conhecimento de que dispomos, a Física Atómica é provavelmente uma das disciplinas que efectua as previsões quantitativas com a maior precisão conhecida. E faz isso recorrendo a abstrações tais como a noção de "electrão" ou de modo mais genérico "partícula elementar", sobre as quais não podemos no entanto sequer dizer que saibamos o que sejam. Ninguém pode dizer que a noção do electrão da Física corresponda ao retrato intrínseco de uma parte da Natureza, pois nem sequer a conseguimos exprimir fora do contexto das equações da Mecânica Quântica. As propriedades do objecto que a Física designa por electrão são de tal modo desconcertantes e contraditórias, que os Físicos nem sequer perdem tempo a pensar sobre o significado de tal "retrato". Em vez disso, usam esse objecto nas suas investigações porque este se revela útil para descrever uma multitude de fenómenos físicos observáveis. Notem que usei o verbo "descrever" em vez de "compreender". Essa escolha não foi casual, e pretende ilustrar a forma como encaro a Ciência. A Ciência é uma ferramenta que permite descrever quantitativamente o "mundo exterior", estabelecendo relações entre diferentes aspectos do mesmo e nada mais.  Na minha opinião, não se pode sequer esperar que qualquer imagem fornecida por qualquer teoria Científica represente a "Realidade tal como ela é", simplesmente porque não temos nenhuma forma de acesso directo à realidade. Todo e qualquer conhecimento tem que ser adquirido de forma indirecta, através da interpretação dos resultados das experiências à luz de ideias formuladas "ad hoc", ou se preferirem, princípios, modelos e teorias.

A evolução das teorias em Física apresenta a meu ver uma estranha correlação entre um cada vez maior poder descritivo da "Realidade" e uma cada vez maior abstracção dos conceitos subjacentes às ditas teorias. Ainda que na sua génese a Ciência tivesse motivações mais elevadas do que ser uma mera ferramenta descritiva da tal "Realidade exterior", isso correspondeu ao período inicial, naturalmente mais ingénuo da sua vida, em que acreditava que a totalidade dos fenómenos se conseguiriam reduzir a uma visão mecanicista do mundo. Essa visão está afastada há muito tempo.

No entanto, apesar da falta de carácter intuitivo dos modelos das disciplinas englobadas pela Física Atómica, Física Quântica e "Física das Altas Energias"  - exemplos de "teorias de ponta" do conhecimento Humano -  estes modelos permitem-nos realizar proezas ao nível da manipulação da tal "Realidade exterior" que designamos vulgarmente por tecnologia. Proezas como por exemplo a imagiologia PET que é simplesmente uma das técnicas mais avançadas e promissoras de investigação médica numa multitude de campos da Medicina.

Acho que as pessoas que acreditam que o conjunto dos conhecimentos da Física das partículas elementares confere o tal conhecimento da Realidade "tal como ela é", estão simplesmente a fechar a porta a muitas perguntas que podem ser feitas e serão certamente feitas mais cedo ou mais tarde quando alguma nova descoberta assim o obrigar. E é minha convicção que a cadeia de perguntas que um ser pensante é capaz de formular sobre qualquer assunto é tão infindável quanto o é a cadeia de respostas encontradas para as mesmas. O comprimento da cadeia depende apenas da escolha que fazemos ao aceitarmos uma dada resposta como um ponto de partida indiscutível. A história da Ciência mostra-nos no entanto que os pressupostos de "ontem" são meras consequências dos pressupostos de "hoje".

Claro que esta minha convicção pessimista sobre o alcançe do conhecimento Humano, não tem qualquer fundamento racional para além de um "feeling". Mas se nem na Matemática é possível formular conjuntos completos de Axiomas que permitam responder a qualquer pergunta que se formule (resultado dos trabalhos de Gödel), o que é que podemos esperar para outros domínios do pensamento, nomeadamente este da Filosofia em que tentamos discutir a Totalidade das coisas (a tal "Realidade exterior")? Acho que não podemos esperar algo de melhor do que a resposta "42" com que Douglas Adams tão bem parodiou este assunto.
Em resumo, é minha convicção de que o conhecimento absoluto procurado por algumas correntes Filosóficas é uma utopia. Realço que esta convicção não é fundamentada em nenhum raciocínio "absoluto" - o que seria uma auto-contradição demasiado óbvia e estúpida - mas decorre da minha percepção de que se nem mesmo nos domínios do conhecimento com maior objectividade (Física e Matemática), existe consenso sobre o significado dos fundamentos, o que podemos nós esperar para assuntos tão difíceis de definir como os que a Filosofia pretende tratar?

Noutro ponto do post Grande Confusão, é-me dito que


Sem uma Filosofia sólida, não há reflexão intelectual válida sobre Ciência. A Ciência não contém as ferramentas para se auto-estudar enquanto conhecimento. O ramo do saber que estuda o conhecimento científico é um ramo bastante digno da Filosofia, que dá pelo nome de Epistemologia. Está repleto de verdades bem conhecidas, esse ramo. Por exemplo, a Epistemologia estuda a validade do método de indução como método de obtenção de leis científicas.


Ao que respondo o seguinte:

Penso que muita boa Ciência foi conduzida por crenças Filosóficas Optimistas (como no caso dos trabalhos de Einstein), mas também existem outros tantos bons exemplos de Cientistas igualmente fundamentais que conduziram o seu trabalho de investigação com base em juízos mais pragmáticos (casos de Bohr, Heisenberg, Feynman,...). Em conclusão, penso que a reflexão feita pela Filosofia sobre a Ciência representa uma vã tentativa de compreender o que a Ciência é. Ningúem sabe qual é o significado do conhecimento Científico e a única validação que este pode obter é a que lhe provém dos resultados da sua aplicação. Não é por haver um estudo sobre a maior ou menor validade do método de indução na obtenção das leis científicas que iremos deixar de as usar. Em rigor, todas as leis científicas são nalgum ponto induzidas, nem que seja ao nível dos postulados ou axiomas.

E isso é tudo quanto temos!

Comentários

  1. A essencia não existe, é um conceito nosso para nos ajudar a compreender as coisas.

    A ciencia preocupa-se com a epistemologia, na realidade a evolução do metodo cientifico precede os achados de filosofia da ciencia.

    A filosofia da ciencia não é mais que uma ciencia da ciencia quando é bem feita.

    Geram-se hipoteses a partir das observações e discutem-se se as conclusoes satisfazem, com comparações com a realidade.

    A validade da ciencia vem da capacidade de construir previsoes (a tal parte que inclui a engenharia) mas não so. Vem de conseguir explicar o que ja se sabe para traz (para alem dessas previsões), de ser consistente entre as suas diferentes areas (ou pelo menos tanto quanto é humanamente possivel) e de aceitar a prova empirica como entidade maxima..

    A metafisica é algo humano, é acerca do que as coisas representam para nos. É o efeito placebo, é o essencialismo platonico, é deus, etc. São coisas da mente e apenas reais enquanto objectos mentais.

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  2. Tenho para mim que apesar de se apegoar muito essas facetas da Ciência que são a sua capacidade explicativa e auto-consistência, aquela que realmente distingue a Ciência das outras actividades intelectuais do Homem consiste na capacidade de previsão. Sem isso, é apenas especulação, por muito sofisticada e cuidada que seja. Arranjar explicações para determinados fenómenos é de um grau de dificuldade menor do que fazer novas previsões. Existem sempre uma multitude de explicações possíveis para determinada questão. Só uma ínfima parte dessas possibilidades traz no entanto capacidade de previsões falsificáveis. Essas explicações sim, são explicações Científicas.

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